O advento da escrita modificou permanentemente a história da Humanidade. Poder preservar e transmitir ideias e conhecimento através de símbolos, sem a necessidade de alguém fisicamente presente no mesmo tempo e lugar em que estamos, é como uma forma de comunicação quase direta não somente com os ancestrais, mas também com aqueles que virão depois de nós. De fato, a escrita foi tão transformadora que em muitas sociedades ganhou um status de Magia e sacralidade, de maneiras e graus diferentes dependendo da época e lugar.

Através deste artigo, vamos analisar como a escrita era vista no antigo Egito e Grécia, valendo-nos de inscrições, papiros e relatos de historiadores que viveram nestes contextos, na tentativa de compreender até que ponto a Escrita e o Ler/Escrever tinham importância para estas duas potências culturais e econômicas do mediterrâneo.

Antes de tudo é importante ressaltar não apenas a diferença entre o antes e depois da escrita, mas também como ela se desenvolveu ao longo do tempo.

Antes da escrita, as tradições estavam limitadas a oralidade. Todo o conhecimento era transmitido de uma pessoa a outra (ou de uma para muitos, muitos para uma, etc), e quem recebesse o conhecimento deveria memorizar cada detalhe do que estava sendo transmitido, dependendo da importância do que recebia. Isso se devia principalmente ao fato de que esta pessoa futuramente transmitiria esse conhecimento para as gerações futuras, e mesmo uma minúscula mudança em um mito, uma lenda, um código, etc, poderia significar uma profunda transformação nestas culturas. Ainda hoje podemos ver algumas tribos indígenas iniciando desde muito jovens pessoas responsáveis por aprender certos tipos de conhecimento dentro da comunidade (medicina, mitologia, etc), que os recebem oralmente e repetidamente até ter memorizado cada detalhe, a exemplo dos aborígenes australianos.

A língua escrita começou há mais de oito mil anos através de símbolos rudimentares em várias partes do mundo, mas foi por volta de 4.000 A.C. na região da Mesotâmia que os primeiros alfabetos foram formados. O surgimento da escrita não foi súbito como muitos podem pensar, e sim um longo e contínuo processo de aperfeiçoamento, difusão entre povos, adaptações, etc. As vogais, por exemplo, foram praticamente as últimas letras a surgir em vários sistemas de escrita, assim como os números (que antes eram representados por letras, assim como notas musicais).

Durante a maior parte da história humana, a escrita esteve restrita a poucos estudiosos que eram responsáveis pelos registros, contabilidade, etc (como os escribas egípcios ou membros de organizações religiosas). Depois a restrição passou a ser de classe econômica, já que os estudos eram restritos a uma elite financeira que podia pagar por tutores ou por universidades. Só muito recentemente que a escrita passou a ser algo cotidiano e acessível a maior parte das pessoas conforme a educação se torna cada vez mais universalmente acessível.

Foi através de migrações, expedições de exploração, estabelecimento de rotas comerciais e intercâmbio cultural que a língua escrita foi se espalhando pelo mundo e se transformando no que conhecemos hoje.

Para os egípcios, a escrita tinha um importante papel nos ritos religiosos (e estes ritos, por sua vez, visavam a manutenção da Ordem cósmica). Era através dos hieróglifos que o conhecimento, os ritos e a tradição eram mantidos.

Para os gregos, as letras só tiveram importância simbólica quando em serviço da oralidade, da música, ao invés do valor que tinham por si mesmas.

Nas culturas derivadas de Orfeu desde pelo menos o século IV antes de Cristo, o som e sua estrutura representavam uma força pacificadora e civilizadora na evolução da cultura clássica; e a expressão ritual (em música, anotada em letras) do sistema cósmico se tornou um meio para a Gnosis. Letras eram stoicheia: símbolos não apenas de sons mas dos elementos cósmicos. Cantá-los trazia um estado de perfeição, enquanto o alfabeto por si só refletia a estrutura cósmica. A palavra ambígua stoicheion captura, novamente, a tendência da cultura grega de transcender a escrita para alcançar um estado ‘oral’ de puro som planetário, para ideias abstratas das formas imediatas da realidade. Neste modo ‘Órfico’ a escrita tinha significância como uma expressão da voz, mas a voz e o tom eram em última análise mais significativos como elementos divinos essenciais do que a escrita” – David Frankfurter

Para um escriba egípcio, o nome e as letras estavam intrinsecamente ligados ao que era nomeado, mas o mesmo não parece verdadeiro aos gregos: Platão, na obra Cratylus, vê a escrita e as letras a serviço das coisas, não acreditando que o conhecimento delas derive de nomes, e sim que tudo deve ser investigado pelo o que de fato é.

A diferença na visão da escrita e do escrever entre essas duas culturas, segundo Frankfurter, se deve a própria natureza dos alfabetos que utilizavam: O alfabeto grego era fonético, ou seja, os símbolos representavam sons, ao passo que os hieróglifos egípcios eram pictóricos, ou seja, representavam não apenas sons, mas também ideias, conceitos e forças cósmicas.

Uma frase escrita para os gregos não era mais do que um conjunto de sons, mas para os egípcios era um conjunto complexo de ideias que se inter-relacionavam, tentavam explicar os atos do Deus criador, e, como explica Emanuele M. Ciapini, os hieróglifos refletem “uma possível leitura do mundo como um discurso divino representado pelo cosmos ordenado” (A ordem da Criação estava na diferenciação das coisas, diferentemente do não Criado, onde as coisas não se diferenciam no Caos das águas de Nun).

Isso era levado tão a sério para eles que apenas a mera presença escrita de um feitiço já garantia que ele funcionasse sem a necessidade de alguém presente que o pronunciasse, e isso evidencia uma fusão entre fala e escrita, unidos em uma terceira coisa que transcende a soma de suas partes, o que Frankfurter chama de  “palavra de poder”.

Seria muito precipitado de nossa parte pensar que para os sacerdotes no Egito tudo o que importava era a escrita. Como a  pronúncia dos sacerdotes era arcaica em relação a língua que falavam os egípcios comuns, mesmo os feitiços novos ganhavam um ar de antiguidade quando pronunciados, como se sempre tivessem existido. Além do mais, era Thoth quem personificava esse conceito de palavra que também é ação e poder (como o Lógos grego, também presente no Corpus Hermeticum), e como tal muitas vezes sua autoridade era invocada na recitação de feitiços e orações, na crença de que isso aumentava o poder destes atos. Isso me faz lembrar da prática da assunção da forma-deus existente em algumas vertentes de magia cerimonial (muitas inspiradas nos Mistérios Egípcios) até os dias de hoje, onde um nome divino associado a uma intensa simbologia e meditações inspira o mago cerimonial a entrar em contato com a força divina desejada e formar um canal por onde essa força pode fluir, personificando-a. Deste modo, o mago deixa de ser um humano comum e passa a ser uma manifestação da divindade invocada, tomando para si não apenas as habilidades mas também a autoridade atribuída a ela.

Há evidências de práticas ritualísticas egípcias envolvendo a escrita, tais como:

*Pronunciar um feitiço que estava escrito em um papiro em voz alta, enrolar este papiro, colocá-lo em um pequeno tubo de madeira e entregá-lo ao cliente que o utilizava como amuleto ou talismã na vida cotidiana.

*Para memorizar um texto ou obter o efeito de determinado feitiço, escrevê-lo em um papiro, mergulhar este papiro em cerveja ou outro líquido, deixar que as palavras se dissolvam nele e então ingerí-lo , de forma que as palavras (e todo o poder que carregam seus hieróglifos) passem a fluir por quem bebeu.

*Feitiços, orações ou textos sagrados eram escritos em imagens religiosas (ou monumentos) que tinham reservatórios de água na base onde, supunha-se, a água, ao entrar em contato com estes escritos, adquiriria o poder neles contidos. Esta água poderia ser usada para banhos rituais, purificações, ingestão, aspersão para consagrações, etc. Esta também era uma maneira de tornar mais acessíveis os feitiços, orações, etc, às pessoas comuns que não sabiam ler nem escrever.

A: Fórmulas mágicas inscritas no fundo do reservatório com a intenção de curar picadas venenosas de escorpiões, cobras e outros animais perigosos. A água, que adquire poderes através do contato físico com as fórmulas escritas, é recolhida diretamente do recipiente e administrada como remédio externo ou ingerido.

B: Diferentemente de A, o recipiente não tem fórmulas mágicas inscritas, implicando que a água deve ser derramada sobre a estela e a parte que for acumulada no recipiente estará carregada com as propriedades curativas.

Outra imagem de “A”, onde é possível ver melhor as inscrições no interior do recipiente. Foto cedida pelo Egyptian Museum em conta do twitter.

Para os gregos, essa magia com as letras não era nada comum. Você não veria um grego usando um “Alfa-Ômega”, uma fórmula mágica ou feitiço escrito em um talismã ou amuleto. O feitiço escrito servia como um registro do rito oral, não como algo que tivesse poder por si mesmo. Também podia acontecer do amuleto ou talismã escrito servir como meio para carregar ou continuar um feitiço para além do ritual que o originou, mas note que ele só teria esse poder única e invariavelmente porque antes veio o rito oral. A magia podia ser escrita, mas escrever não era um ato mágico.

Com a crescente relação entre Egito e Grécia, uma síntese foi formada e muitos conceitos passaram de uma a outra e vice-versa. Isso pode explicar o fenômeno da Ephesia Grammata: um conjunto de letras e palavras aparentemente sem sentido usadas como fórmulas mágicas para obter efeitos. Há registros entre os gregos de que essa forma de magia sim, tinha poder mesmo na forma escrita, apesar de serem componentes de fórmulas orais.

Muitas dessas fórmulas, ao que parece, tem origem em culturas não-gregas e, conforme foram se popularizando, nomes gregos foram incorporados a elas. Muitas dessas fórmulas podem ser encontradas nos Papiros Mágicos Gregos (disponíveis na biblioteca da Serpentarius traduzidos para o inglês juntamente com os textos originais em demótico ).

Há quem pense inclusive que as Ephesia Grammata tratam-se do registro do fenômeno da Glossolalia, que é o fenômeno linguístico de falar supostas línguas divinas em estado de fervor religioso ou transe.

Podemos encontrar exemplos desse tipo de encantamento em um dos textos perdidos do Corpus Hermeticum (encontrado em Nag Hammadi em 1945), chamado de O Discurso da Ogdoada e da Enéade:

“[…] Ser perfeito; o deus invisível a quem se fala em silêncio; o qual a imagem é movida quando é ordenada, e é ordenada;  poderoso em poder; aquele que é exaltado acima da majestade; que é superior aos honrados; ZOXATHAZO A OO EE OOO EEE OOOO EE OOOOOO OOOOO OOOOOO UUUUUU OOOOOOOOOOOOOOO ZOZAZOTH”

(obs: aqui, “ordenado” é no sentido de ter Ordem, diferente do Caos, então ao dizer “o qual a imagem é movida quando é ordenada” quem pronuncia quer dizer que a imagem de Deus é percebida na Ordem; isso não quer dizer que não há Deus no Caos, uma vez que quando se lê os demais textos do Corpus Hermeticum fica claro que Deus é visível através de sua criação, pois tudo o mais que ele abarca nos é invisível e está além da nossa compreensão, conceito idêntico ao da religião egípcia ao explicar Amon -aquele cujo nome está oculto- ).

“Oh, Graça! Depois disto, eu agradeço a ti com minha canção. Você me deu vida quando me fez sábio. Eu te louvo. Eu invoco o seu nome oculto em mim: A O EE O EEE OOO III OOOO OOOOO OOOOO UUUUUU OOOOOOOOOOO OOOOOOOOOOO”

Essas fórmulas também podem cair na categoria das Voces Magicae (também conhecidas como Onomata Barbara, Nomina Magica ou Voces Mysticae), que são palavras sem significado aparente formadas a partir de palíndromos, jogos de palavras, formas geométricas construídas com palavras (Carmina Figurata), etc, utilizadas para se obter um efeito. Como exemplo podemos citar o AKRAKANARBA, possível origem do Abracadabra, originária dos Papiros Mágicos Gregos, e que tinha como propósito ser um feitiço de dissolução

Nos mesmos papiros, encontramos as vogais gregas organizadas de forma que, ao que parece, a representação visual tem importância, carregando algum tipo de significado para além da pronúncia oral das fórmulas. A este fenômeno damos o nome de Carmina Figurata, que são os padrões geométricos que os textos mágicos instruem que sejam utilizados na inscrição das palavras e nomes em amuletos, talismãs, objetos ritualísticos, etc, muitas vezes carregando, conforme a forma geométrica, uma relação com planetas, signos, divindades, etc.

Podemos citar ao menos quatro modelos de organização geométrica das Carmina Figurata presentes nos Papiros Mágicos Gregos:

Especulações Órficas e Pitagóricas falavam sobre a Harmonia das Esferas, ou música universal, ajudaram a criar a ideia de que os humanos podiam interagir e participar dessa Harmonia através do entoamento (ou do cantar) ritual das vogais. O exemplo mostrado anteriormente (O Discurso da Ogdoada e da Enéade) ilustra bem essa situação.

Foi por volta do século II depois de Cristo que as vogais foram adicionadas às práticas e textos litúrgicos egípcios, na forma do Copta (uma versão modificada do alfabeto grego com influência do Demótico, que também continha sons originalmente não existentes na língua grega). Vale lembrar que a relação entre as culturas grega e egípcia começaram a se estreitar desde pelo menos o século V antes de Cristo. Os hieróglifos eram um tanto imprecisos em relação a sua fonética, por não conter vogais, além de a maioria deles não ser sequer fonéticos (ou seja, ligados a sons), e sim determinativos (ou seja, eram ligados a ideias).

Como os sacerdotes valorizavam a pronúncia perfeita de seus textos e feitiços (já que isso significava uma melhor performance dos ritos que mantinham a Ordem cósmica), elas foram rapidamente adotadas e difundidas, sendo consagradas a Thoth. Não é por acaso que os primeiros exemplos de Copta sejam quase totalmente de textos mágicos onde letras gregas eram utilizadas para representar a língua egípcia.

 Neste ponto da História, os egípcios aprenderam dos gregos o conceito da representação da fonética e do som que se fundiram com o conceito egípcio da palavra de poder (que é visual e carrega consigo também o poder da fala), e esta ideia foi adotada pelos gregos. Egípcios sacralizaram as vogais gregas, gregos as tornaram em insígnias visuais de forças cósmicas e assim uma cultura acabava promovendo a outra.

Os Caracteres também tiveram relevância para ambas as culturas. Os Caracteres são símbolos que aparentemente não derivam de um alfabeto conhecido, encontrados gravados em estelas, pedras preciosas, objetos ritualísticos, etc.

Assim como os hieróglifos, eles representam ideias, só que de feitiços completos em um único símbolo. Há vinculado ao Caracter a ideia de “alfabeto divino”, fazendo dele uma versão gráfica da Glossolalia.

Nos Papiros Mágicos Gregos, uma substância onde inscreve-se uma sequência de  caracteres assume um poder relacionado a eles, transformando-a em um talismã ou amuleto, ou seja, um uso idêntico ao já visto com os feitiços escritos no Egito e, em muitos casos, vistos como espiritualmente superiores a escrita fonética.

Encontrado em uma tira de couro (Londres, Museu Britânico, Hay 10434r,v ). Texto publicado

sem fotografias em W.E. Crum, “Magical Texts in Coptic-II” JEA 20 (1934):199

As civilizações egípcia e grega moldaram boa parte do nosso mundo. Este artigo não tem a pretensão de fingir ser capaz de abordar toda a complexidade da escrita para estes povos, e sim servir de ponto inicial para um estudo muito mais profundo. Refletir sobre a importância da escrita para outras pessoas em vários períodos inevitavelmente deve nos levar a pensar sobre a importância que ela tem para nós nos dias atuais e o quanto dependemos dela. Só o fato de refletir a respeito disso já nos inspira uma certa reverência e senso de sagrado pelas palavras, símbolos, sons e seus significados.

-Cazmilian Zórdic

Para este artigo foram utilizadas como base as seguintes pesquisas:

-O uso das Voces Magicae nos Papiros Mágicos Gregos -Patrícia Schlithler da Fonseca Cardoso

-Magic in the sign: iconic writings in the litany of Neith at Esna and the performative nature of the divine name (Esna 216.1-4) -Emanuele M. Ciampini

-The magick of writing and the writing of magic: The power of the word in egyptian and greek traditions – David Frankfurter

-Preliminary remarks on the demotic book of Thoth and the greek hermetica – Jean-Pierre Mahé

-Opening the Way of Writing: semiotic metaphysics in the Book of Thoth – Edward P. Butler

-Horus and the crocodiles -Keith C. Steele